Partido da liberdade e o desastre de areópolis
No começo, a colonização de Marte não foi fácil: devido à grande variedade etnocultural dos primeiros colonos – mesmo dentro de uma única província – e ao fato de muitos serem oriundos de regiões socialmente menos estáveis, problemas urbanos da Terra, como vandalismo, criminalidade e xenofobia, aumentaram assustadoramente. Crimes de ódio eram especialmente comuns, e conflitos raciais ameaçavam a segurança de cidades inteiras.
Para ajudá-la a solucionar esses problemas – já que Marte, com sua distância, não era fácil de contatar – a ONU criou a Elenag, encarregando-a de garantir a paz nas colônias marcianas a qualquer custo. A princípio, a própria agência teve de enfrentar hostilidades e desentendimentos culturais internos; porém, sob a administração sábia e eficiente de Feng Wei, os funcionários da Elenag superaram suas diferenças etnoculturais. E então, cinco anos após sua criação, a agência deu início à tarefa que lhe haviam dispensado.
Primeiro, ela criou o Ministério de Segurança Pública, e, no ano de 2181, obteve seu primeiro departamento de polícia com treinamento completo. Com a permissão das metrópoles, a primeira Ministra de Segurança Pública, Sieglinde Hörst, estabeleceu departamentos de polícia da Elenag em cada cidade marciana. Em seguida, ela convenceu os prefeitos e governadores de Marte a implantarem medidas mais severas para diminuir a animosidade e cortar o mal da criminalidade pela raiz – como aumentar a vigilância sobre os cidadãos e instalar um toque de recolher.
A polícia (tanto a da Elenag quanto a urbana) aprisionou centenas de pessoas em dois anos, incluindo chefes de gangue, mas isso só piorou o ânimo geral, o que culminou nas Grandes Rebeliões de 2184, quando as cidades de Nova Daomé, Genesis, Ayodhya, Hongtai e Aoshima quase entraram em colapso. Depois disso, a Elenag pediu à própria ONU permissão para lidar com a violência da forma que lhe aprouvesse, alegando que a burocracia das províncias estava atrapalhando seu trabalho.
A ONU aceitou. Alguns prefeitos e governadores protestaram contra a intrusão da agência – e, na maioria das províncias, estes foram imediatamente depostos por suas respectivas metrópoles e substituídos por políticos dispostos a trabalhar com a Elenag. Em seguida, a agência convenceu os governos a imporem leis ainda mais severas e que diminuíram mais ainda as liberdades dos cidadãos, mas que, a Elenag garantiu, durariam apenas enquanto as Rebeliões perdurassem. Isso desagradou as pessoas, no início, mas a maioria aceitou a nova política, ansiosa por ver suas frágeis cidades em paz.
E a Elenag aumentou drasticamente sua participação na sociedade marciana, conduzindo vigilância em massa, mantendo o toque de recolher (embora diminuísse gradualmente sua duração), detendo e interrogando qualquer um que considerassem suspeito (mesmo sem mandado); prendendo criminosos condenados e enviando-os a reformatórios fora de Marte, deportando até mesmo quem havia sido condenado por infrações leves, porém repetidas (como alcoolismo)… No fim, contudo, a Elenag teve sucesso em estabelecer a ordem nas cidades, e isso convenceu as metrópoles da Terra a deixarem a agência manter seu poder sobre as províncias marcianas – desde que não violassem nenhuma das leis terranas que tinham a obrigação de apoiar.
Para ajudá-la a solucionar esses problemas – já que Marte, com sua distância, não era fácil de contatar – a ONU criou a Elenag, encarregando-a de garantir a paz nas colônias marcianas a qualquer custo. A princípio, a própria agência teve de enfrentar hostilidades e desentendimentos culturais internos; porém, sob a administração sábia e eficiente de Feng Wei, os funcionários da Elenag superaram suas diferenças etnoculturais. E então, cinco anos após sua criação, a agência deu início à tarefa que lhe haviam dispensado.
Primeiro, ela criou o Ministério de Segurança Pública, e, no ano de 2181, obteve seu primeiro departamento de polícia com treinamento completo. Com a permissão das metrópoles, a primeira Ministra de Segurança Pública, Sieglinde Hörst, estabeleceu departamentos de polícia da Elenag em cada cidade marciana. Em seguida, ela convenceu os prefeitos e governadores de Marte a implantarem medidas mais severas para diminuir a animosidade e cortar o mal da criminalidade pela raiz – como aumentar a vigilância sobre os cidadãos e instalar um toque de recolher.
A polícia (tanto a da Elenag quanto a urbana) aprisionou centenas de pessoas em dois anos, incluindo chefes de gangue, mas isso só piorou o ânimo geral, o que culminou nas Grandes Rebeliões de 2184, quando as cidades de Nova Daomé, Genesis, Ayodhya, Hongtai e Aoshima quase entraram em colapso. Depois disso, a Elenag pediu à própria ONU permissão para lidar com a violência da forma que lhe aprouvesse, alegando que a burocracia das províncias estava atrapalhando seu trabalho.
A ONU aceitou. Alguns prefeitos e governadores protestaram contra a intrusão da agência – e, na maioria das províncias, estes foram imediatamente depostos por suas respectivas metrópoles e substituídos por políticos dispostos a trabalhar com a Elenag. Em seguida, a agência convenceu os governos a imporem leis ainda mais severas e que diminuíram mais ainda as liberdades dos cidadãos, mas que, a Elenag garantiu, durariam apenas enquanto as Rebeliões perdurassem. Isso desagradou as pessoas, no início, mas a maioria aceitou a nova política, ansiosa por ver suas frágeis cidades em paz.
E a Elenag aumentou drasticamente sua participação na sociedade marciana, conduzindo vigilância em massa, mantendo o toque de recolher (embora diminuísse gradualmente sua duração), detendo e interrogando qualquer um que considerassem suspeito (mesmo sem mandado); prendendo criminosos condenados e enviando-os a reformatórios fora de Marte, deportando até mesmo quem havia sido condenado por infrações leves, porém repetidas (como alcoolismo)… No fim, contudo, a Elenag teve sucesso em estabelecer a ordem nas cidades, e isso convenceu as metrópoles da Terra a deixarem a agência manter seu poder sobre as províncias marcianas – desde que não violassem nenhuma das leis terranas que tinham a obrigação de apoiar.
A partir daí, a agência tornou-se como que um governo paralelo em Marte – e, não muito após as Grandes Rebeliões, mesmo nos Anéis Estelares. Tendo, até então, efetivamente escolhido mais da metade dos prefeitos e governadores em Marte, a agência implementou a disciplina de Estudos Sociais em cada escola marciana; nela, crianças aprendiam não apenas sobre respeito a culturas, como, também, sobre a própria Elenag.
O resultado foi que toda uma geração de marcianos cresceu acreditando que a agência era fundamental ao seu bem-estar. Certamente a população de Marte viveu anos de tranquilidade após 2184; mais que isso, questões como racismo, discriminação cultural e homofobia foram amplamente superadas. Ao despontar da década de 2190, a Elenag gozava de grande popularidade, e cada vez mais províncias se abriam à sua influência.
Por outro lado, a agência nunca encerrou as políticas que havia estabelecido originalmente sob o pretexto de trazer ordem a um mundo caótico – mesmo após conquistar, de fato, tal ordem. Embora tivessem acabado com o (muito impopular) toque de recolher, a vigilância massiva sobre os cidadãos e a prática de deter supostos suspeitos sem um mandado de seus respectivos governos foram ambas mantidas. Não obstante, o sucesso e a popularidade da Elenag eram tais que até seus aspectos mais controversos eram tidos como “males necessários”, e a maioria dos marcianos simplesmente os aceitavam como fatos da vida.
No entanto, “maioria” não iguala “todos”. Um grupo de pessoas da cidade confederada de Areópolis questionou se aqueles males eram verdadeiramente “necessários”, argumentando que os marcianos já haviam aprendido a viver em ordem e em paz sem a constante intervenção da Elenag. Inspirados por seus muito estimados valores democráticos, esses areopolitanos fundaram, em 2191, o Partido da Liberdade, o qual se oporia à influência e à vigilância da Elenag.
Eles divulgaram suas ideias e objetivos e, apesar de não conseguirem muito apoio dentre seus conterrâneos confederados, conseguiram, sim, atrair simpatizantes da porção estadunidense da Província Norte-Americana e até das outras províncias. À altura de seu quinto aniversário, o Partido já possuía pelo menos duas filiais em cada província.
Entre 2191 e 2207, o Partido da Liberdade assumiu uma posição de destaque na política de Marte. Em todo lugar seus candidatos venciam eleições e cadeiras em parlamentos ou congressos – dependendo da província em questão –, em todo lugar sua popularidade aumentava, e cada vez mais o povo o via como uma alternativa para a Elenag. Assim, parecia que uma nova era estava começando em Marte, uma era onde seus habitantes aprendiam a se governar pela razão e pela responsabilidade, e não por um governo de controle.
Porém, no Natal de 2207, uma tragédia ocorreu.
A principal sede do Partido ficava em sua cidade natal, Areópolis, próxima às encostas do Monte Arsai e além do extremo oeste dos Vales Marineris. Essa era a única cidade administrada pelo Partido em todas as suas esferas, do governo até a manutenção da infraestrutura da cidade. Para o Natal do ano 2207, muitos dos afiliados do Partido foram convidados a uma festa em Areópolis. E então, naquele 25 de Dezembro, em uma falha chocante dos técnicos e dos sistemas que monitoravam a enorme usina nuclear da cidade, a catástrofe aconteceu: os reatores superaqueceram e explodiram, despedaçando o Domo de Energia e deixando a cidade sem energia – e, consequentemente, sem ar e exposta ao frio assassino de Marte. Dos milhões que viviam em Areópolis, apenas alguns milhares sobreviveram, resgatados por tropas da Elenag.
O Desastre de Areópolis foi devastador para o Partido da Liberdade. De um só golpe, ele perdeu suas principais lideranças e toda a sua reputação: pessoas culpavam o Partido pela tragédia – afinal, a manutenção da usina estava sob sua responsabilidade – ao mesmo tempo que elogiavam o eficiente resgate dos sobreviventes por parte da Elenag. Já nas eleições seguintes, os políticos Livres se viram – sem exceções – removidos de suas posições, substituídos por políticos de partidos favoráveis à Elenag.
O próprio nome do Partido tornou-se quase uma palavra obscena, e apoiá-lo publicamente significava cometer suicídio político e passar vexame diante da sociedade. Assustados pelo fim horrível que Areópolis tivera, o povo de Marte abriu os braços mais uma vez à Elenag, sacrificando liberdades individuais por uma vida segura, eficiente e confiável.
No entanto, nem todo mundo aceitou aquele incidente sem reclamar. A princípio, muita gente (mesmo fora de Marte) chamou a atenção para o fato de que uma usina nuclear ser monitorada de forma tão negligente era quase inacreditável; era senso comum, especialmente após as Rebeliões, que as cidades marcianas eram ambientes frágeis, no sentido de que um único ato de irresponsabilidade poderia ter consequências desastrosas. Por isso, pensar que os profissionais altamente treinados da usina areopolitana seriam capazes de falhar daquele jeito parecia um absurdo. Várias equipes de especialistas já foram enviadas às ruínas de Areópolis para analisá-las, porém todas concluíram que a única explicação para a falha da usina era negligência por parte de seus funcionários.
Não obstante, alguns continuam se recusando a crer nessa explicação, e várias “teorias conspiratórias” já apareceram, muitas alegando que a Elenag teria, de alguma forma, sabotado a usina. Mas essas ideias são normalmente consideradas ainda mais absurdas que a oficial, e assim o Desastre de Areópolis permanece um dos maiores e mais infames mistérios da História humana recente.
O resultado foi que toda uma geração de marcianos cresceu acreditando que a agência era fundamental ao seu bem-estar. Certamente a população de Marte viveu anos de tranquilidade após 2184; mais que isso, questões como racismo, discriminação cultural e homofobia foram amplamente superadas. Ao despontar da década de 2190, a Elenag gozava de grande popularidade, e cada vez mais províncias se abriam à sua influência.
Por outro lado, a agência nunca encerrou as políticas que havia estabelecido originalmente sob o pretexto de trazer ordem a um mundo caótico – mesmo após conquistar, de fato, tal ordem. Embora tivessem acabado com o (muito impopular) toque de recolher, a vigilância massiva sobre os cidadãos e a prática de deter supostos suspeitos sem um mandado de seus respectivos governos foram ambas mantidas. Não obstante, o sucesso e a popularidade da Elenag eram tais que até seus aspectos mais controversos eram tidos como “males necessários”, e a maioria dos marcianos simplesmente os aceitavam como fatos da vida.
No entanto, “maioria” não iguala “todos”. Um grupo de pessoas da cidade confederada de Areópolis questionou se aqueles males eram verdadeiramente “necessários”, argumentando que os marcianos já haviam aprendido a viver em ordem e em paz sem a constante intervenção da Elenag. Inspirados por seus muito estimados valores democráticos, esses areopolitanos fundaram, em 2191, o Partido da Liberdade, o qual se oporia à influência e à vigilância da Elenag.
Eles divulgaram suas ideias e objetivos e, apesar de não conseguirem muito apoio dentre seus conterrâneos confederados, conseguiram, sim, atrair simpatizantes da porção estadunidense da Província Norte-Americana e até das outras províncias. À altura de seu quinto aniversário, o Partido já possuía pelo menos duas filiais em cada província.
Entre 2191 e 2207, o Partido da Liberdade assumiu uma posição de destaque na política de Marte. Em todo lugar seus candidatos venciam eleições e cadeiras em parlamentos ou congressos – dependendo da província em questão –, em todo lugar sua popularidade aumentava, e cada vez mais o povo o via como uma alternativa para a Elenag. Assim, parecia que uma nova era estava começando em Marte, uma era onde seus habitantes aprendiam a se governar pela razão e pela responsabilidade, e não por um governo de controle.
Porém, no Natal de 2207, uma tragédia ocorreu.
A principal sede do Partido ficava em sua cidade natal, Areópolis, próxima às encostas do Monte Arsai e além do extremo oeste dos Vales Marineris. Essa era a única cidade administrada pelo Partido em todas as suas esferas, do governo até a manutenção da infraestrutura da cidade. Para o Natal do ano 2207, muitos dos afiliados do Partido foram convidados a uma festa em Areópolis. E então, naquele 25 de Dezembro, em uma falha chocante dos técnicos e dos sistemas que monitoravam a enorme usina nuclear da cidade, a catástrofe aconteceu: os reatores superaqueceram e explodiram, despedaçando o Domo de Energia e deixando a cidade sem energia – e, consequentemente, sem ar e exposta ao frio assassino de Marte. Dos milhões que viviam em Areópolis, apenas alguns milhares sobreviveram, resgatados por tropas da Elenag.
O Desastre de Areópolis foi devastador para o Partido da Liberdade. De um só golpe, ele perdeu suas principais lideranças e toda a sua reputação: pessoas culpavam o Partido pela tragédia – afinal, a manutenção da usina estava sob sua responsabilidade – ao mesmo tempo que elogiavam o eficiente resgate dos sobreviventes por parte da Elenag. Já nas eleições seguintes, os políticos Livres se viram – sem exceções – removidos de suas posições, substituídos por políticos de partidos favoráveis à Elenag.
O próprio nome do Partido tornou-se quase uma palavra obscena, e apoiá-lo publicamente significava cometer suicídio político e passar vexame diante da sociedade. Assustados pelo fim horrível que Areópolis tivera, o povo de Marte abriu os braços mais uma vez à Elenag, sacrificando liberdades individuais por uma vida segura, eficiente e confiável.
No entanto, nem todo mundo aceitou aquele incidente sem reclamar. A princípio, muita gente (mesmo fora de Marte) chamou a atenção para o fato de que uma usina nuclear ser monitorada de forma tão negligente era quase inacreditável; era senso comum, especialmente após as Rebeliões, que as cidades marcianas eram ambientes frágeis, no sentido de que um único ato de irresponsabilidade poderia ter consequências desastrosas. Por isso, pensar que os profissionais altamente treinados da usina areopolitana seriam capazes de falhar daquele jeito parecia um absurdo. Várias equipes de especialistas já foram enviadas às ruínas de Areópolis para analisá-las, porém todas concluíram que a única explicação para a falha da usina era negligência por parte de seus funcionários.
Não obstante, alguns continuam se recusando a crer nessa explicação, e várias “teorias conspiratórias” já apareceram, muitas alegando que a Elenag teria, de alguma forma, sabotado a usina. Mas essas ideias são normalmente consideradas ainda mais absurdas que a oficial, e assim o Desastre de Areópolis permanece um dos maiores e mais infames mistérios da História humana recente.